sábado, 23 de maio de 2015

A Humanidade no Apocalípse

E virei-me para ver quem falava comigo.
E, virando-me, vi sete castiçais de ouro;
E no meio dos sete castiçais um semelhante ao Filho do homem,
vestido até aos pés de um cinto de ouro. Apocalipse 1:12-13

Ao nos virarmos para a Antropologia do Apocalipse, encontramos a primeira referência ao Filho do Homem. Ele está centrado entre os sete castiças, iluminado em plenitude pelo Espírito de Deus. Não há sombras! Nada a esconder ou se ocultar. É o ἀποκάλυψις ἰησοῦ χριστοῦ (revelação de Jesus Cristo) no qual "Nada há escondido que não venha a ser revelado, nem oculto que não venha a se tornar conhecido" (Mt 10.26, NVI). 

Sua primeira aparição é em semelhança ao ser humano, pois "era necessário que ele se tornasse semelhante a seus irmãos em todos os aspectos, para se tornar sumo sacerdote misericordioso e fiel com relação a Deus, e fazer propiciação pelos pecados do povo" (Hb 2.17). Embora esta semelhança não se reduza ao aspecto corporal, neste primeiro momento é importante fixarmos este marco. A humanidade tem sua origem a partir da imagem e semelhança de Deus.

O homem é "imagem e semelhança" de Deus. Os termos hebraicos são tselem e demut. […] Os termos parecem sinônimos ou uma repetição para reforço (não aparece no texto hebraico o vav, partícula que corresponde à nossa conjunção e, com a função de conetivo) e indicam a diferenciação entre o homem e o restante da criação. […] No grego, a melhor tradução para tselem e demut seria "escultura". Olhando-se a escultura poder-se-ia ter uma noção do modelo. A escultura buscaria ser uma representação do modelo". (ISALTINO, 2001, p.6-7).

O Filho do Homem é esse modelo de humanidade, é dele que tomamos a semelhança e, paradoxalmente, a quem emprestamos semelhança. O termo volta por várias vezes para fazer aproximação entre e a visão que João teve e a descrição que ofereceu, ou seja, semelhante ao filho do homem (1.13), a jaspe (4.3), a uma vara de medir (11.1), a um leopardo (13.2), a um mar de vidro (15.2), a voz de uma grande multidão e ao vidro puro (21.18). 

Ao ser arrebatado em espírito, João passou por uma experiência idêntica à de Paulo que também "foi arrebatado ao paraíso e ouviu coisas indizíveis, coisas que ao homem não é permitido falar (2º Co 12.4)". É indizível por serindescritível, forçando João a recorrer a uma linguagem de comparação. Seria no dizer de Kant o fenômeno em relação ao noumeno, ou, a coisa como se apresenta e a coisa-em-si.

"o sujeito pode conhecer a prioriunicamente os fenômenos, mas não as coisas em si, ou seja, em linguagem kantiana, os noumenos. O centro da argumentação é o seguinte: uma coisa é a realidade tal como ela é, e outra coisa é a maneira como essa mesma realidade aparece diante de mim enquanto sujeito do conhecimento. A realidade, tal como ela é, em sua essência (noumeno) é incognoscível, ou seja, não podemos conhecê-la. Contudo, eu posso conhecer o modo como ela me aparece (fenômeno), posto que o modo de seu aparecimento não dependerá só dela, mas de mim também. Portanto, jamais conhecemos as coisas em si (noumeno), mas somente tal como elas nos aparecem (fenômenos)" (YAZBEK)

Neste caso, o noumeno é Jesus. Ele é indescritível, mas se fenomenaliza por assemelhar-se ao humano. Pensar assim seria quase parear com o gnosticismo doceta pois "afirmava que o corpo humano de Cristo não passava de fantasma" (BETTENSON, 2001, p.77). Não é isto que o símbolo propõe. Jesus semelhante ao filho do Homem revela que a origem da humanidade não está no Édem, em Adão, mas em Cristo, o primogênito de toda a criação (Cl 1.15). 

O Filho do Homem é antes de todas as coisas, assumindo a plenitude da natureza humana em si mesmo. Este artigo de fé foi expresso no símbolo de Calcedônia em 451 AD, após muita controvérsia entre apolinaristas, nestorianos e eutiquianos. Estes três grupos formaram o tripé de discussões sobre a humanidade e a divindade de Jesus, levando a igreja a um concílio onde expressa:

"Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade, perfeito quanto à humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, constando de alma racional e de corpo; consubstancial ao Pai, segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade; em todas as coisas semelhante a nós, excetuando o pecado, gerado segundo a divindade antes dos séculos pelo Pai e, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da virgem Maria, mãe de Deus; Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis, inseparáveis e indivisíveis; a distinção das naturezas de modo algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar uma só pessoa e subsistência; não dividido ou separado em duas pessoas. Mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, Jesus Cristo Senhor; conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu". (BETTENSON, 2001, p.101).

Antes de Gênesis 2.26 (façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança), temos Colossenses 1.16 (pois nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos ou soberanias, poderes ou autoridades; todas as coisas foram criadas por ele e para ele). Esta hierarquia de anjos foi criada antes de Adão, junto com a casta dos quatro seres viventes que estão ao redor do Trono de Deus (4.6), inclusive "o terceiro [que] tinha rosto como de homem" (4.7). Se tinha rosto semelhante a homem mas foi criado antes de Adão, a quem se assemelhava? Para elucidar o enigma leiamos o texto paralelo de Ezequiel:

Apocalipse 4.7

 O primeiro ser parecia um leão, o segundo parecia um boi, o terceiro tinha rosto como de homem, o quarto parecia uma águia em voo.

Ezequiel 10.14
Cada um dos querubins tinha quatro rostos: Um rosto era o de um querubim, o segundo, de um homem, o terceiro, de um leão, e o quarto, de uma águia.

Os querubins são anjos criados antes de Adão e que estão diretamente ligados ao Trono de Deus. O fato de terem forma, rosto e mãos de homem indica que possuem – também – natureza humana. Podemos inferir que os seres viventes de Apocalipse são querubins como em Ezequiel? Neste caso, concluiremos que Jesus criou a natureza humana antes de criar Adão e dotou, no mínimo, uma de suas castas angelicais desta natureza. Mais ainda, houve um de seus querubins cuja natureza humana ocasionou sua queda. Se pensarmos em Lúcifer como um anjo de natureza humana, podemos compreender o símbolo das sete cabeças que o dragão possui. 

Sete é símbolo de perfeição e cabeça representa sabedoria, portanto, Lúcifer era o querubim perfeito em sabedoria, conforme Ezequiel 28.12. Mas uma de suas cabeças foi ferida de morte (Ap 13.3), e sua sabedoria se corrompeu. A tradição bíblica interpreta Ezequiel 28.1-19 como revelando a queda deste querubim protetor que andava entre as pedras afogueadas. O texto começa dizendo:

"No orgulho do seu coração você diz: ‘Sou um deus; sento-me no trono de um deus no coração dos mares'. Mas você é um homem, e não um deus, embora se considere tão sábio quanto Deus" (v. 2).

Logo depois ele é tratado como "o querubim guardião" cujo "coração tornou-se orgulhoso por causa da sua beleza" (v. 17). Tamanho orgulho o fez desdenhar de sua natureza humana, ao ponto dizer em seu coração: "Subirei aos céus; erguerei o meu trono acima das estrelas de Deus; eu me assentarei no monte da assembleia, no ponto mais elevado do monte santo" (Is 14.13). 

Mas a consequência do orgulho foi sua queda e a humilhação de ouvir: "É esse o homem que fazia tremer a terra, abalava os reinos, fez do mundo um deserto, conquistou cidades e não deixou que os seus prisioneiros voltassem para casa?" (Is 14.16-17). Este querubim está aparentado com os homens, e o próprio Jesus o chama de "príncipe deste mundo" (Jo 12.31) e "homicida desde o princípio" (Jo 8.44). É o assassino da humanidade e "não pensa nas coisas de Deus, mas nas dos homens" (Mt 16.23). Enfim, o diabo, a antiga serpente – que é Satanás – pertence a casta dos querubins com natureza humana. E semelhante a ele, existem, pelo menos, mais cinco desses anjos; quatro em Ezequiel e um no Apocalipse.

Olhei e vi uma tempestade que vinha do norte: uma nuvem imensa, com relâmpagos e faíscas, e cercada por uma luz brilhante. O centro do fogo parecia metal reluzente, e no meio do fogo havia quatro vultos que pareciam seres viventes. Na aparência tinham forma de homem, mas cada um deles tinha quatro rostos e quatro asas. Suas pernas eram retas; seus pés eram como os de um bezerro e reluziam como bronze polido. Debaixo de suas asas, nos quatro lados, eles tinham mãos humanas. Os quatro tinham rostos e asas, e as suas asas encostavam umas nas outras. Quando se moviam andavam para a frente, e não se viravam. Quanto à aparência dos seus rostos, os quatro tinham rosto de homem, rosto de leão no lado direito, rosto de boi no lado esquerdo, e rosto de águia. (Ezequiel 1.4-10)

Os demais querubins com natureza humana não pecaram, mas um antigo mito conta que outros anjos, de outra casta, pecaram e "deixaram sua própria habitação" (Jd 6). Qual foi este pecado? Judas compara o pecado destes anjos aos de Sodoma e Gomorra, os quais se entregaram "à fornicação como aqueles, indo após outra carne" (Jd 7). O silogismo é claro: tanto os anjos quanto os sodomitas cometeram pecados sexuais. Enquanto os sodomitas queriam abusar dos anjos (Gn 19.1-5), os anjos abusaram das filhas dos homens (Gn 6.2). Este mito se encontra no Livro de Enoque e no Testamento dos Doze Patriarcas:

Henoc 7.1-2
E aconteceu depois que os filhos dos homens se multiplicaram naqueles dias, nasceram-lhe filhas, elegantes e belas. E quando os anjos, os filhos dos céus, viram-nas, enamoraram-se delas, dizendo uns para os outros: Vinde, selecionemos para nós mesmos esposas da progênie dos homens, e geremos filhos.

Testamento dos Doze Patriarcas
 Porque assim foram seduzidos os anjos antes do dilúvio. Porque de tanto observarem e admirarem as filhas dos homens, eles acabaram por cobiçá-las, de sorte vieram a conceber um perverso intento; e foi assim que eles assumiram a forma dos humanos, e apareceram as mulheres como quando elas se encontram com os seus maridos.

O pecado destes anjos está ligado à raça dos humanos. Raça que o Apocalipse trata como de homens maus (2.2), que matam uns aos outros (6.4), mortais (8.11), sem Deus (9.4), procuram a morte e desejam morrer (9.6), são atormentados (9.10), adoradores de demônios (9.20), destinados ao fogo (16.8), agoniados (16.10) e blasfemos (16.21). 

Embora tenha origem em Gênesis 1.27, sua descendência somente nasce a partir de Gênesis 4.1 (Adão teve relações com Eva, sua mulher, e ela engravidou e deu à luz Caim. Disse ela: "Com o auxílio do SENHOR tive um filho homem"). Isto localiza a humanidade como uma raça caída, que não experimentou a inocência do Édem e gerada sob os auspícios da malignidade do diabo. Caim –o primeiro filho de Adão –pertencia ao Maligno (1ª Jo 3.12) sendo portanto, filho do diabo. 

Mas o Apocalipse também fala dos filhos de Deus. Homens comprados para Deus de toda tribo, língua, povo e ação (5.9), selados (9.4), primícias para Deus (14.4) e povo de Deus (21.3). "Estes são os que vieram da grande tribulação e lavaram as suas vestes e as alvejaram no sangue do Cordeiro" (7.14), "os quais não nasceram por descendência natural, nem pela vontade da carne nem pela vontade de algum homem, mas nasceram de Deus" (Jo 1.13), regenerados pela Palavra (1ª Pe 1.23) e pelo Espírito (Jo 3.8), gente que "ele [...] resgatou do domínio das trevas e [...] transportou para o Reino do seu Filho amado" (Cl 1.13), "felizes e santos que participam da primeira ressurreição!" (Ap 20.6).

Portanto, a origem da humanidade está imbricada com a eternidade do Filho de Deus, a criação dos anjos, o pecado de Adão e o Novo Nascimento. Enquanto que os nascidos de Deus são criados pela Palavra, em semelhança do Verbo, os filhos do diabo são gerados na queda. São duas castas de humanos – tragicamente irmanadas – identificadas na parábola do joio e do trigo como sendo filhos do Reino e filhos do Maligno (Mt 13.38). Separados para o céu ou para o inferno, eternamente destinados para a vida ou morte, santidade ou pecado, perdão ou condenação, luz e trevas, paz e pavor, Deus ou, ou...

Referências Eletrônicas






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