segunda-feira, 14 de novembro de 2016

O Estratagema das Serpentes

O conselho é sempre uma inútil advertência, uma proposta que possui a virtude de nunca ser aceita, que todos gostam de dar e ninguém de receber. Todos somos médicos para os males dos outros e para cada qual damos uma terapêutica, porque cada um tem sua medicina infalível. A juventude não gosta de ouvir conselhos e, na idade adulta, cometemos o mesmo erro que imputamos aos jovens, e prosseguimos não ouvindo as recomendações que nos dão.

Desde Adão que o conselho é uma fórmula um tanto desmoralizada. Já a serpente, ofidicamente esperta e viva, compreendeu a inutilidade de se dirigir diretamente a Adão para industriá-lo. Conhecia, desde aquela época, o coração humano; melhor diríamos: o do homem. Adão não aceitaria o seu convite. Podia adorná-lo de frases lindas — e a serpente foi precursora dos artistas — podia pôr uma tonalidade convincente de voz, rebuscar, num estilo bem medido, palavras certeiras, que despertariam os instintos que dormitavam em Adão.

A serpente poderia ter feito, pois tinha lábia suficientemente reptilesca, mas Adão era homem e não fora feito para ouvir admoestações, porque lhe inculcaram os deuses um pouco desse chamado complexo quixotesco de superioridade. Mas Eva, e a mulher o atesta, por outro lado, sofre um certo complexo de inferioridade. A serpente sabia disso, e conhecia psicanálise melhor que o Dr. Freud, e usou de uma dissuasão indireta.

Foi à Eva em vez de Adão, já que este não aceitaria sugestões, pois é sempre demasiadamente altivo e cabeça dura para aceitar opiniões dos outros. Eva não era assim. Bastava tocar em sua vaidade, despertável sempre por sentir-se inferior. A serpente sabia que a vaidade possui razões que a razão desconhece, e ainda aí, a serpente precedia Pascal e superava-o. Expôs-lhe o que era o "fruto proibido": ele era tudo, precisamente tudo o que lhe faltava.

A falta tem sempre um gosto de proibição, desde os tempos adâmicos, e a serpente usou o eterno estratagema: o “das ausências”. Tudo o que Eva quisesse, desejasse, e mesmo o que ela, em sua nudez e em sua inocência, não conhecia nem poderia desejar, aquele fruto tão maduro pelo sol, tão à mão, tão fácil para os olhos e para os lábios, ali estava para oferecer-lhe encantamentos insuspeitados. A exortação da serpente obteve bom êxito.

Mas o que a serpente queria não era Eva, porque se somente ela pecasse, sabia, o Criador seria condescendente, magnânimo, sobretudo tratando-se de uma pobre mulher. Se, porém, Adão seguisse o seu conselho e pecasse, tudo seria diferente, porque Adão era demasiadamente robusto, enérgico, vivo, de postura atlética, cheio de vontade, convicto de sua superioridade histórica por ser o primeiro homem na face da Terra. A serpente sabia que o Senhor não lhe perdoaria a desobediência. No entanto, se fosse Adão o pecador, impediria ele que Eva também o fosse.

Ante o seu crime, seria capaz de um gesto de suprema abnegação, porque a um homem, como Adão, tudo era possível, sobretudo tratando-se de uma mulher como Eva. E ela seria poupada, e a serpente não ganharia a glória de ter arrastado para o mundo, para o seu mundo, para a terra, para além das fronteiras do Paraíso, antecâmara do Céu, o homem que ela disputava com o Senhor. Por isso preferiu ir diretamente a Eva para atingir Adão, e tudo seria obtido com a máxima facilidade. E, além disso, retirava ao Senhor a oportunidade de perdoar.

O fruto proibido prometia tanta coisa... umas reticências provocadoras . . . e Eva não resistiria. Não andava ela pelo Paraíso à cata de tudo, querendo ver tudo, examinando tudo? Não a vira abrir as conchinhas, espreitar os ninhos, esconder-se atrás das árvores para surpreender as intimidades dos animais? Essa volúpia de saber era demasiadamente superficial, mas indicava-lhe, natural e ingenuamente, o ponto fraco onde atacar. E foi. Eva, a princípio, relutou.

Mas quando a serpente lhe pôs nas mãos e junto ao rosto o fruto maduro, rosado, apetitoso, foi negando com a cabeça que Eva o segurou. E comeu-o. Poderia guardar segredo? A serpente sabia que não. Ela jamais deixava de dizer a Adão tudo o que aprendia durante o dia. Não guardaria para si o segredo, e depois um anjo do Senhor andava espreitando-os, e certamente descobriria tudo, e Adão, num rompante heroico, se solidarizaria com ela. E se tremesse ante a ira do Senhor?

Esse pensamento era demasiado doloroso para que a serpente o contivesse. Por isso, insinuou-lhe que dissesse a Adão, e já. Nada mais expressivo que a confissão adâmica, quando o Senhor lhe perguntou por que o desobedecera, comendo o fruto proibido: "Foi Eva quem m'o deu, e eu comi..." Ingênua e nobre resposta, simples, mas histórica, vindo de Eva, embora forjado pela serpente, era aceita, e uma das primeiras leis psicológicas formou-se nos tempos felizes do paraíso terrestre: o homem só aceita conselhos quando eles vêm por intermédio da mulher.

Adão inaugurou esse sistema que, depois, formaria a técnica vulgar dos que desejam dominar e arrastar os homens. Veja-se a história: todas as conquistas humanas, todas as ideologias, todas as ideias vencem, quando mulheres as encarnam, para fundi-las na alma dos homens. O homem sempre desconfia do homem, e o seu complexo de superioridade não lhe permite aceitar orientações dadas por outro homem. Reage sempre; seu primeiro impulso é sempre de oposição. A mulher, não; vem como Eva, de mansinho, meiga, serena, gentil, e pede sem pedir, propondo.


Conjura de baixo, não de cima; e aí está o sucesso dos conselhos femininos. Obriga, por isso, a que o homem pense sobre o convite. E a força reativa, que gera seu complexo de superioridade, desaparece ante ela, porque não a considera igual. É outro sexo, e, pensando ou não, aceita. Assim, aqueles que desejam ou desejarem aconselhar os homens, façam-no através das mulheres. Não tem sido outra a técnica dos dominadores, desde Maquiavel e muito antes de Maquiavel, desde a serpente, que foi a primeira adepta da psicologia aplicada, nos bons tempos áureos do paraíso terrestre...

Artigo do Dr. Mário Ferreira dos Santos

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