O conselho é sempre uma inútil advertência, uma
proposta que possui a virtude de nunca ser aceita, que todos gostam de dar e
ninguém de receber. Todos somos médicos para os males dos outros e para cada
qual damos uma terapêutica, porque cada um tem sua medicina infalível. A
juventude não gosta de ouvir conselhos e, na idade adulta, cometemos o mesmo
erro que imputamos aos jovens, e prosseguimos não ouvindo as recomendações que
nos dão.
Desde Adão que o conselho é uma fórmula um tanto
desmoralizada. Já a serpente, ofidicamente esperta e viva, compreendeu a
inutilidade de se dirigir diretamente a Adão para industriá-lo. Conhecia, desde
aquela época, o coração humano; melhor diríamos: o do homem. Adão não aceitaria
o seu convite. Podia adorná-lo de frases lindas — e a serpente foi precursora
dos artistas — podia pôr uma tonalidade convincente de voz, rebuscar, num
estilo bem medido, palavras certeiras, que despertariam os instintos que
dormitavam em Adão.
A serpente poderia ter feito, pois tinha lábia suficientemente reptilesca, mas Adão era homem e não fora feito para ouvir admoestações,
porque lhe inculcaram os deuses um pouco desse chamado complexo quixotesco de
superioridade. Mas Eva, e a mulher o atesta, por outro lado, sofre um certo
complexo de inferioridade. A serpente sabia disso, e conhecia psicanálise
melhor que o Dr. Freud, e usou de uma dissuasão indireta.
Foi à Eva em vez de Adão, já que este não
aceitaria sugestões, pois é sempre demasiadamente altivo e cabeça dura para
aceitar opiniões dos outros. Eva não era assim. Bastava tocar em sua vaidade,
despertável sempre por sentir-se inferior. A serpente sabia que a vaidade
possui razões que a razão desconhece, e ainda aí, a serpente precedia Pascal e
superava-o. Expôs-lhe o que era o "fruto proibido": ele era tudo,
precisamente tudo o que lhe faltava.
A falta tem sempre um gosto de proibição, desde
os tempos adâmicos, e a serpente usou o eterno estratagema: o “das ausências”. Tudo
o que Eva quisesse, desejasse, e mesmo o que ela, em sua nudez e em sua
inocência, não conhecia nem poderia desejar, aquele fruto tão maduro pelo sol,
tão à mão, tão fácil para os olhos e para os lábios, ali estava para
oferecer-lhe encantamentos insuspeitados. A exortação da serpente obteve bom
êxito.
Mas o que a serpente queria não era Eva, porque
se somente ela pecasse, sabia, o Criador seria condescendente, magnânimo,
sobretudo tratando-se de uma pobre mulher. Se, porém, Adão seguisse o seu
conselho e pecasse, tudo seria diferente, porque Adão era demasiadamente
robusto, enérgico, vivo, de postura atlética, cheio de vontade, convicto de sua
superioridade histórica por ser o primeiro homem na face da Terra. A serpente
sabia que o Senhor não lhe perdoaria a desobediência. No entanto, se fosse Adão
o pecador, impediria ele que Eva também o fosse.
Ante o seu crime, seria capaz de um gesto de
suprema abnegação, porque a um homem, como Adão, tudo era possível, sobretudo
tratando-se de uma mulher como Eva. E ela seria poupada, e a serpente não
ganharia a glória de ter arrastado para o mundo, para o seu mundo, para a
terra, para além das fronteiras do Paraíso, antecâmara do Céu, o homem que ela
disputava com o Senhor. Por isso preferiu ir diretamente a Eva para atingir
Adão, e tudo seria obtido com a máxima facilidade. E, além disso, retirava ao
Senhor a oportunidade de perdoar.
O fruto proibido prometia tanta coisa... umas
reticências provocadoras . . . e Eva não resistiria. Não andava ela pelo
Paraíso à cata de tudo, querendo ver tudo, examinando tudo? Não a vira abrir as
conchinhas, espreitar os ninhos, esconder-se atrás das árvores para surpreender
as intimidades dos animais? Essa volúpia de saber era demasiadamente superficial,
mas indicava-lhe, natural e ingenuamente, o ponto fraco onde atacar. E foi.
Eva, a princípio, relutou.
Mas quando a serpente lhe pôs nas mãos e junto
ao rosto o fruto maduro, rosado, apetitoso, foi negando com a cabeça que Eva o
segurou. E comeu-o. Poderia guardar segredo? A serpente sabia que não. Ela
jamais deixava de dizer a Adão tudo o que aprendia durante o dia. Não guardaria
para si o segredo, e depois um anjo do Senhor andava espreitando-os, e
certamente descobriria tudo, e Adão, num rompante heroico, se solidarizaria com
ela. E se tremesse ante a ira do Senhor?
Esse pensamento era demasiado doloroso para que
a serpente o contivesse. Por isso, insinuou-lhe que dissesse a Adão, e já. Nada
mais expressivo que a confissão adâmica, quando o Senhor lhe perguntou por que
o desobedecera, comendo o fruto proibido: "Foi Eva quem m'o deu, e eu
comi..." Ingênua e nobre resposta, simples, mas histórica, vindo de Eva,
embora forjado pela serpente, era aceita, e uma das primeiras leis psicológicas
formou-se nos tempos felizes do paraíso terrestre: o homem só aceita
conselhos quando eles vêm por intermédio da mulher.
Adão inaugurou esse sistema que, depois,
formaria a técnica vulgar dos que desejam dominar e arrastar os homens. Veja-se
a história: todas as conquistas humanas, todas as ideologias, todas as ideias
vencem, quando mulheres as encarnam, para fundi-las na alma dos homens. O homem
sempre desconfia do homem, e o seu complexo de superioridade não lhe permite
aceitar orientações dadas por outro homem. Reage sempre; seu primeiro impulso é
sempre de oposição. A mulher, não; vem como Eva, de mansinho, meiga, serena,
gentil, e pede sem pedir, propondo.
Conjura de baixo, não de cima; e aí está o
sucesso dos conselhos femininos. Obriga, por isso, a que o homem pense sobre o
convite. E a força reativa, que gera seu complexo de superioridade, desaparece
ante ela, porque não a considera igual. É outro sexo, e, pensando ou não,
aceita. Assim, aqueles que desejam ou desejarem aconselhar os homens, façam-no
através das mulheres. Não tem sido outra a técnica dos dominadores, desde
Maquiavel e muito antes de Maquiavel, desde a serpente, que foi a primeira
adepta da psicologia aplicada, nos bons tempos áureos do paraíso terrestre...
Artigo do Dr. Mário Ferreira dos Santos
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